quinta-feira, 7 de julho de 2011

De volta ao Rio


Rio, 25 junho 2011. Aterrissei no Galeão às 4h40 da terça-feira passada, dia 21. Em Paris, o dia já ia firme por volta das 10h, iniciando oficialmente o verão com a Fête de la Musique, que espalhou palcos e acordes por toda a cidade. Isso me fez pensar sobre meu timing (ou falta de), afinal embarquei para Paris uma semana antes do carnaval e voltei um dia antes da Festa da Música. No Rio, o inverno dava o ar de sua debilidade, sufocado em úmidos 20 graus, saudando minha chegada de um séjour de quatro meses em terra estrangeira. Cheguei mais magro do que quando parti, mas a verdadeira transformação é mais difícil precisar. Ela ainda está se dando, neste exato momento, em que perambulo pelo limbo do não-lugar, efeito do déplacement, já tão mencionado nas linhas deste diário de campo.

Os franceses, seres deliciosamente estranhos, têm uma expressão — “coup de foudre” — que é mal traduzida nos demais idiomas como “amor à primeira vista”. É uma interpretação precária, pois não traz o vigor expresso na idéia de “golpe” ou de “raio”. A força luminosa que atravessa, num zás repentino e inesperado, o espírito humano, transformando-o para sempre. Um impacto fulminante, normalmente amoroso, que, como dizia Claude Lévi-Strauss, convida a alma a retornar ao corpo.

É uma espécie de transe que torna o olhar sideral, concentra-se no cerebelo e paralisa o sistema nervoso central. É como um veneno que se espalha por veias e artérias, tetaniza os músculos, sobretudo os respiratórios, e queima a pele. Tremores, suores e paixão. É uma força mais dionisíaca que apolínea. Subverte qualquer lógica. É o Descartes emaranhado no Catatau de Leminski: perdido nos trópicos, ele fuma o estranho tabaco que lhe oferece o pajé, em frente ao mar da costa pernambucana, e desconstrói a idéia de razão, dissolvendo-a num inquietude verbal.

O português também inventou, com seu lirismo, uma expressão para essa “ocorrência silenciosa”, como diria Manduka, referindo-se ao seu caráter de explosão interna. Trata-se da idéia de “saudade”, igualmente mal traduzida nos demais idiomas como nostalgia. Mas saudade, com sua intensidade intangível, expressa o coup de foudre na condição já de perda, de algo que aconteceu ou que poderia ter acontecido e se perdeu no tempo e, exatamente por isso, retorna como assombração e encantamento. O transe, embora insuportavelmente intenso, já era e só pode ser percebido como experiência vivida. É Riobaldo, estupefato, descobrindo a mulher oculta no corpo morto de Diadorim. É o sortilégio do passado.

Coup de foudre e saudade são, assim, duas expressões de impetuosidade fulgurante, mas que, no caso francês, se dá no instante. E, para mim, viajar é uma espécie de coup de foudre e certamente uma saudade. É apaixonar-se perdidamente de um só golpe pelo “outro”, mesmo que esse “outro” seja, mais que carne e osso, uma suposição, um universo alheio e distinto.

Essa viagem foi um raio que me iluminou num sobressalto. Em parte pelo déplacement, com certeza, mas sobretudo pelas pessoas com quem interagi. Pessoas que me acolheram, abrigaram e me deram alguma noção de porto, ao mesmo tempo em que, sem querer, tiraram meu chão, ao me mostrarem outro mundo possível. Ao sair do efeito da hipnose, não sou mais o mesmo. Não vejo mais o mundo da mesma maneira. E tampouco saberia precisar o que mudou, pois se trata de uma ebulição em andamento e inconsciente. Ao olhar as anotações deste diário talvez encontre pistas do fenômeno. Mas acho desnecessário. Então, encerro o blog por aqui, com algumas imagens que registrei após as últimas anotações, que foram ficando cada vez mais esparsas, à medida que minha alma se dissolvia no dia-a-dia desta cidade. Continuo, no entanto, escrevendo no velho Pendura Essa, cujo link encontra-se abaixo. A bientôt!