domingo, 3 de abril de 2011

Anotações de campo

A fachada do Penty, um pé-sujo de esquina, de frente para o mercado: o que mais se pode querer?

Paris, 3 abril 2011. Observações de campo, a partir do café Le Penty. Mais uma vez, entro no bairro pelo botequim. Tenho ido todos os dias ao Le Penty, que é um ótimo ponto para observar o vaivém do Marché d’Aligre. O Penty pertence a um senhor de uns 60 e tantos, um judeu egípcio, que toca o negócio com os filhos (três moças e um rapaz) e o irmão. A casa abriga os velhos moradores do bairro, inclusive os de origem magrebina, mas também vem sendo “freqüentado” pelo bobôs, que o vêem como uma referência de “autenticidade” do bairro.

O bar em si é muito simples e não tem a mesma sofisticação dos concorrentes em torno do mercado d’Aligre, como La Grille, Le Baron Rouge, Le Charolais e o Kofe. Está mais para um pé-sujo, como o Bar du Marché (este ainda mais radicalmente rudimentar e pouco ou nada freqüentado pelos bobôs). Também parece estar mais na onda do Le Tabac, que também mistura bem os dois tipos de vizinhos. O pessoal também toma café na “chocalateria” Puerto Cacao (extremamente bobô) e nas boulangeries Confisseur e La Pain au Naturel.

O comércio em torno do mercado e nas ruas adjacentes dão bem a medida da mistura que todo o 12eme está passado, sobretudo na área do Marché d’Aligre. Há várias lojas sofisticadas (decoração; móveis; livrarias especializadas em temas, como arquitetura; antiquarius, cafés, restaurantes e bistrots) e outras, tradicionais (sobretudo as de comida: boucheries, poissonneries, triperies, fromageries, epiceries etc). Também proliferam pelo bairro (e por toda Paris) as agências de venda e aluguel de imóveis.

O Penty visto por dentro: balcão e mesinhas

Como no Rio, a especulação imobiliária fez os preços dos imóveis, para aluguel e venda, saltarem muito além dos fundamentos econômicos do mercado, gerando uma bolha, que em algum momento vai estourar. O apartamento de Marta é um exemplo: Ela comprou o imóvel há 10 anos, antes de o bairro ser “revitalizado”, com obras de infra-estrutura e renovação dos equipamentos urbanos, e antes também da chegada da leva de bobôs. Ná época, ela pagou 2 mil euros por metro quadrado. Hoje, o imóvel vale 10 mil euros o metro quadrado, segundo o site de agentes imobiliários meillieursagentes.com.

Na Place d’Aligre, o grande prédio em curva, com jeito de HLM, tem apartamentos, segundo o mesmo site, que variam de 5.138 euros o metro quadrado a 9.809 euros o metro quadrado, sendo os apartamentos dos últimos andares os mais caros. Valorizam o imóvel ainda se o prédio tem elevador, se as janelas abrem para vários lados da rua ao mesmo tempo, o tipo de chaminé, pátio interno etc. Se for mantida a mesma proporção em relação à valorização do preço do apartamento de Marta, que é no mesmo arrondissement, esses valores quintuplicaram em dez anos, sendo que o grande salto mesmo se deu nos últimos três anos.

O prédio 15 da Place d'Aligre, onde o preço médio do metro quadrado varia de 5 mil e tanto a quase dez mil euros: especulação

Não é por acaso que Paris vive uma profunda crise de moradia, o que levou à manifestação que cobri para o Globo no mês passado. Os manifestantes pediam sobretudo uma política de habitação que ponha um limite ao mercado imobiliário(estabelecendo mesmo um teto para os preços dos imóveis), pois hoje não há qualquer lei que limite os reajustes de aluguéis ou preços de imóveis.

Por mais que seja difícil classificar o que exatamente significa bobô como fenômeno urbano, eles são muito fáceis de perceber, quando perambulam pelo bairro e chegam aos cafés. O termo foi inventado pelo articulista do New York Times, David Brooks, e, portanto, trata-se mais de um fetiche jornalístico do que um conceito sociológico ou urbanístico. É um grupo social classificado pela expressão “bourgeois-bohêmes”, uma espécie de classe média alta, culta, intelectual, inclusive artistas, profissionais liberais, que amam a boemia e um sentido de “autenticidade” da cidade, da gastronomia, da arte, da literatura etc.

Já o gentrifier — que é o tipo de novo morador com maior poder aquisitivo, que se muda para o bairro popular, transformando sua morfologia social — atravessa o sentido de bobô, mas um não é necessariamente o outro, daí a dificuldade de classificar esse grupo social que é visivelmente fácil de reparar na rua e nos cafés do Marché d’Aligre. Bem, o fato é que o bairro está tomado por bobôs, com suas roupas elegantes, cachecóis estilosos, botas de caminhada e celulares de última geração tecnológica.

No Penty, sua presença alivia os negócios do patron, mas espanta os fregueses mais antigos, que não ficam muito tempo no bar. Tomam seu chá de menta, conversam um pouco entre si e com o dono, a maioria em pé, no balcão, e vão embora. Os bobôs, por sua vez, sentam-se às mesas, abrem seus laptops, lêem seus livros ou simplesmente degustam suas bebidas (mais cedo, cafés e chás; mais tarde, cervejas ou vinhos), jogando conversa fora. Os jovens magrebinos (20 e poucos), com suas jaquetas de couro escuras, se encontram no bar, mas logo partem. Me parece que, para eles, o Penty é um ponto de encontro para ir a algum outro lugar.

Esquina da rue Cotte com rue Th. Roosevelt, nos fundos do mercado fechado: bobolândia

Há ainda um terceiro tipo de freguês, que nem é o bobô nem é o morador “tradicional” (magrbino, africano, operário). É um morador do bairro, classe-média mais simples, como esse sujeito careca que entrou agora com uma amiga. Ele é um velho freqüentador do Penty, que chegou falando alto e com intimidade com as pessoas do bar. Fez piada com um outro cliente, para pedir para usar uma cadeira que estava sobrando em sua mesa. Também me impressiona a quantidade de crianças e adolescentes que vem ao Penty com os pais. À minha frente, pai e filha (ele com uns 40 e tantos e ela, com uns 14) repartem um croque monsieur. Ela bebe Coca-Cola e ele, uma Amstel pression. Há ainda os que vêem com seus cães. E os que se encontram para fazer juntos jogos, como soduku. O bar de proximidade em Paris é um parque de diversões!

À medida que a feira vai acabando, o volume de clientes cresce no Penty. Mais e mais pessoas chegam com sacolas de compras para comer ou beber alguma coisa. O Penty tem uma cozinha muito simples: croque monsieur, croque madame (o croque monsieur com um ovo em cima) ou omeletes. Mas, além de ter a cerveja mais barata que encontrei até agora em Paris, o Penty oferece gratuitamente uns potinhos com azeitonas e castanha como acompanhamento. Nesse momento de maior movimento, o bar enche e esvazia várias vezes.

Rue de Cotte, em pleno processo de gentrification, com os imóveis sendo renovados para serem vendidos ou alugados a preços estratosféricos

Aproveito o bar para ler os livros da pesquisa. Ontem, comprei o do Orham Pamuk, sugerido por Franco La Cecla: Autres Coleurs, onde tem o capítulo em que Pamuk narra porque não se tornou arquiteto. Também estou curtindo muito o livro de La Cecla e sua crítica aos “arquiestrelas”, os arquitetos estrelas. Me dá boas inspirações.

Ao fim dessa postagem, fui surpreendido pela chamada de meu compadre Tito Rosemberg, de sua casa em Pipa, no litoral do Rio Grande do Norte. Falamos por vídeo-conferência e pude ver um pouco a casa, que foi construída por ele. Estou devendo uma visita. Ele também pôde falar conigo, Marta e Ruben. Outro dia, falei com minha querida Mila Chaseliov, que está em Jerusalém! Muito bom o Skype!

2 comentários:

  1. Grande prazer PT! Vou ver se chego aí antes de você voltar! Boas aventuras urbanas!

    ResponderExcluir
  2. Obrigado, compadre. Se vc vier, vamos fazer a festa por aqui! Abração, mano véio!

    ResponderExcluir