segunda-feira, 16 de maio de 2011

Fête de la trôle



A fanfarra só de mulheres, quebrando tudo no churrasco comunitário

Paris, 16 maio 2011. A ausência dos últimos dias decorreu de vários compromissos acadêmicos e de minha pesquisa, que exigiram minha total concentração. Na última quinta-feira, dia 12, apresentei um seminário na Universidade de Paris Ouest — Nanterre, a convite do Departamento de Sociologia, e seu curso de mestrado Economie et sociétés — Mutations des sociétés contemporaines. Esse laboratório tem um curso de mestrado intitulado Socio-anthropologie de l’Amérique Latine, que é coordenado pelos professores Pedro José Garcia Sanchez (um venezuelano radicado na França) e Sylvie Pedron-Colombani. Foi para os alunos de Pedro que fiz uma apresentação.

A encenação na Place d'Aligre: Comuna de Paris para cerca de 400 pessoas

O problema é que ele preferiu, pelos temas que vem tratando em seu curso, que eu falasse sobre minha tese, em que me debrucei sobre o ofício do jornalista contemporâneo, focando nos ritos de interação social no ambiente de trabalho, para tentar vislumbrar o rumo desse ofício que passa por uma verdadeira revolução. O título do seminário acabou ficando pomposo demais, mas vá lá, o assunto merece: Les défis contemporains de l’enquête et de l’information: entre le journalisme et l’anthropologie ou Le journalisme à la époque de sa réprodution numérique.

O rango comunitário da Commune Libre d'Aligre: barbecue e cerveja

Eu, que tenho um problema genético de timidez aguda, sempre sofri para fazer meus seminários, palestras e aulas no Brasil, na França então... outro país, outro idioma... Os elementos que pesavam sobre minha timidez foram tantos, que acabei relaxando e fiz uma boa apresentação de duas horas, com mais meia hora de debate. No fim, saí aliviado e feliz por ter passado por mais esse teste. Antes de iniciar essa viagem, esse era um dos grandes fantasmas que rondavam meu espírito. Mas o melhor teria sido debater com os alunos o processo de gentrification no Rio e em Paris, tema de meu pós-doc.

Cartazes convocando para os eventos da Fête de la trôle

A segunda banda pôs o pessoal para dançar

Feito esse parêntesis, digamos, epistemológico, após a experiência do seminário, voltei para minha etnografia, razão desse séjour em Paris. Passei os últimos dias mergulhado no bairro d’Aligre, acompanhando uma série de eventos, alguns cotidianos outros excepcionais, como a fête de la trole, promovida pela Commune Libre d’Aligre, englobando a sexta-feira e o sábado passados.

O pessoal caiu dentro do churrasco: integração comunitária pelo estômago

Na sexta, teve uma encenação teatral sobre a Comuna de Paris, que está completando 140 anos, e representa o espírito que a Commune Libre d’Aligre pretende para o bairro: uma relação independente em relação à Prefeitura, um domínio dos comitês e associações sobre a vida comunitária dos bairros, tudo isso com um caráter socialista e mesmo anarquista. A encenação foi realizada na Place d’Aligre, que é o coração do bairro, e terminou com as cerca de 400 pessoas presentes cantando a Internacional, algumas com a mão no coração. Voilà, esse é o espírito que norteia não só a associação, mas um tipo de francês consciente, com mais de 40 anos, de origem operária que vive no quartier.

O pessoal contribui com uns trocadinhos (que não dão para nada)...

O trio americano tocando blues do Mississippi no dia principal do mercado

A peça, muito bem encenada, com atores profissionais, que montaram um cenário na praça e aproveitaram um longo poema sobre os eventos históricos da Comuna de Paris como guia da encenação. À medida que iam recitando suas falas, o público reagia, vaiando os representantes do governo e aplaudindo os revoltosos. Uma coisa inocente e ingênua, quase mesmo pueril, mas mesmo assim emocionante, sobretudo nesses dias de niilismo e fragmentação. No fim, ajudei o pessoal a desmontar e recolher as cadeiras espalhadas pela praça e conversei com Cécile, uma das líderes da Commune Libre d’Aligre. Ela me disse que muitos dos jovens franceses desconhecem os eventos da Comuna, numa total alienação.

No mercado fechado também tem música...

... e, do lado de fora, o homem africano faz malabarismo...

... e o pessoal passa o abaixo-assinado pelo direito a voto para os estrangeiros

De minha parte, aproveitei para indagar por que os residentes do bairro de origem magrebina não participavam dos eventos da associação. Ela me disse que já fizeram de tudo para atraí-los para as atividades comunitárias, mas eles permanecem fechados entre eles. Nem mesmo as refeições comunitárias gratuitas ou eventos preparados especialmente para eles, como projeção de filmes sobre cultura árabe ou muçulmana conseguiu animá-los. Com a geração mais nova, eles conseguiram, pelo menos, criar um vínculo de trabalho. Eles contratam os jovens para ajudar na preparação de eventos e pagam. Nessa relação de biscate, o pessoal aparece, faz as coisas (tipo montar palcos etc.), mas não se liga no conteúdo dos eventos. Apenas trabalham em vão embora, assim que são pagos.

Panfletos da Commune Libre d'Aligre à disposição no dia da festa

A geração mais velha — a maioria deles residente no Foyer dos trabalhadores à rue Beccaria — forma um grupo muito unido e solitário. Eles trabalharam uns 35 ou 40 anos, enviando dinheiro para seus familiares que ficaram nos países de origem, Tunísia, Argélia, Marrocos e tal. Com o tempo, acabaram perdendo o vínculo com as gerações mais novas de sua própria família, inclusive filhos, a quem raramente viam. Na aposentadoria, tendo os direitos de residência reconhecidos na França, optaram por viver aqui, onde não são reconhecidos como franceses, mas pelo menos têm seus amigos, em situação similar.

Detalhe do jardim comunitário Aligresse

Todos os dias, eles se vestem com apuro, colocando terno, e vão para o mercado, para a praça ou os cafés das imediações, onde se encontram e conversam. Eles formam um grupo muito peculiar, que se destaca visualmente dos bobôs e mesmo dos antigos moradores do bairro. Cada um deles tem histórias de vida incríveis, que dariam para horas e horas de boa prosa. Mas o problema é que muitos falam o idioma precariamente, a maioria não é alfabetizada (não sabe escrever) em francês, limitando-se ao vocabulário do cotidiano. Sua conversa é mesmo em árabe.

Eu e Sandrine no Penty... conversa de botequim

No sábado, a festa prosseguiu. Um churrasco ao lado do jardim comunitário do bairro, abriu os eventos do dia. O jardim, o Aligresse, merece também uma explicação. Era uma área abandonada, com imóveis precários e já meio desabando, que a prefeitura pretendia renovar e passar à iniciativa privada. Os moradores se organizaram e conseguiram transformar uma parte da área em um conjunto habitacional popular, que aqui chamam de HLM, mas sofisticado, com apartamentos muito bem equipados e serviço básico de altíssima qualidade (nada a ver com os condomínios da época de Lacerda de que vem falando Rogerinho Daflon em sua excelente série de reportagens no Globo). Numa outra parte do terreno, os moradores conseguiram fazer um parquinho e o jardim comunitário, onde todos participam, plantando e cuidando.

O churrasco do sábado teve direito à fanfarra e muita animação. A banda formada só por mulheres tocou o rebu. Depois, outra banda, essa mista, assumiu a programação. Gostei muito dos arranjos que incluíam desde clássicos como Besame mucho a riffs de reggae bem dançantes. Me lembrou o trabalho que o pessoal dos tambores de Candombe fazem em Botafogo (saudades de Joana). Teve ainda atividades para crianças, exposições, ateliês de portas abertas na vizinhança e um jantar comunitário. A maioria dos participantes eram moradores antigos de classe média ou bobôs recém-chegados ao bairro.

Gosto dessa foto porque mostra o Penty na esquina, o prédio ao lado, que está sendo reformado e vai se tornar num empreendimento bobô, e a velhinha atravessando a rua, molhada pela passagem pelo caminhão lava-ruas da prefeitura

Entre esses eventos, aproveitei sempre para passar no Penty e fazer anotações. Acho que consegui cobrir todo o horário de funcionamento do café, anotando os tipos de clientes que variam segundo o horário e os dias. Tudo isso fotografado e anotado. Até fiz uma amizade com uma freguesa, chamada Sandrine, que me viu escrevendo no caderno de campo e ficou curiosa.

Augustin e sua amiga, Martine, no Penty

Ontem, no domingo, fiz minha visita habitual ao mercado. Reparei que os músicos começam a invadir a região. Do realejo ao trio de blues americano, passando pelo sanfoneiro solitário, que toca sempre a mesma canção (o que funciona como um aviso de sua presença nas imediações), há cada vez mais manifestações artísticas, à medida que o tempo se firma e a temperatura oscila agradavelmente entre 15 e 20 graus, sem chuva. Há também muita panfletagem sobre os temas mais variados, da luta contra a instalação de câmera de vigilância (ao contrário do Rio, onde os moradores clamam por elas), ao abaixo-assinado pedindo direito de voto para os estrangeiros que vivem e trabalham na França.

No Penty, aproveitei o domingo para tomar um chope com meu amigo Augustin Geoltrain, que me falou extensamente sobre Belleville, este sim um quartier que merece uma extensa pesquisa (e que vem sendo etnografado com competência pelo pessoal do Laboratório de Etnografia Metropolitana, do IFCS-UFRJ), tanto são os fenômenos sociais que se manifestam no lugar de uma ponta a outra. Foram horas de boa conversa com ele, que tem uma percepção e sensibilidade agudíssimas, além de um excelente bom humor. Agora que estou nos últimos 30 e poucos dias antes de meu regresso, quero me concentrar mais ainda nas leituras e no trabalho de campo no bairro. A bientôt.

2 comentários:

  1. Paulinho, a não adesão dos magrebinos a (fan)farra cívica dos franceses é sempre reveladora do tal do "bem comum", centro de todos os escritos liberais desde que o mundo industrial é mundo ! Você está cheio de elementos bacanas para compor um belo trabalho. Adoro ver a politização dos franceses, ainsi que leurs bonnes intentions. Formidable! E felicitações pela sua apresentaçaõ em Paris X. Tenho certeza que foi muito bacana ! Outra coisinha: gostei muito do "another feeling". E senti saudades do Augustin ! E você está lindo! (puxa, quanta coisa !) Beijos, Sô.

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  2. Querida Sô, pois é. Eu senti que quando pergutei à Cécile sobre os magrebinos acabei tocando num ponto sensível do sonho republicano e jacobino da Commune... Foi com um certo embaraço e num tom de desculpas que ela me fez toda uma longa explanação dos esforços que a associação fez para integrar esses cidadãos de segunda classe. Mas é como se a frase racista da turma do Le Pen ecoasse inconscientemente na cabeça de todos: La France pour les français...
    Quanto a Nanterre, quase desisti, pois estou a toda focado n'Aligre e aquilo não deixou de ser um desvio epistemológico. Mas, no fim, valeu muito à pena, sobretudo se resultar numa publicação como sugeriu o Pedro. Mas gostei mesmo de encontrar o Augustin, que é um pouco como eu, les célibataires incorrigibles... Beijos e saudade.

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