terça-feira, 29 de março de 2011

De volta aos relatos

Saindo do Jardin Luxembourg e entrando no boulevard St-Michel

Paris, 29 março 2011. De casa nova, tive nos últimos dias dificuldades para acessar a internet e fiquei sem câmera fotográfica. Isso acabou me impossibilitando de atualizar o diário sobre minha França Fantasma, embora tenha enchido cadernetas e blocos com anotações, insights, pensamentos e desabafos. De modo que peço desculpas pelo longo texto, mas ele é um resumo dos últimos dias. Para facilitar o contato com as pessoas, comprei uma pequena câmera e instalei o skype no computador. Anotem: ipaco5.

Sinto que começo uma nova fase em Paris, agora com menos estranhamento e mais trabalho. As coisas avançam rapidamente na École. Obtive acesso às bibliotecas francesas e isso é algo que precisa ser administrado com cuidado, pois dá vontade de mergulhar nesses universos para sempre. Amanhã tenho um rendez-vous com Agnès Deboulet, da área de arquitetura da École. Vai ser nosso segundo papo e ela se mostrou muito interessada em minha pesquisa, chegando a dizer que ninguém estudou ainda o Marché d’Aligre. Ao mesmo tempo, meu trabalho de campo avança, com muitas anotações. Algumas delas compartilharei aqui.

Exposição fotográfica Femmes éternelles à travers le monde, com 80 portraits de Olivier Martel, nas grades do Jardin Luxembourg

Para começar uma indicação bibliográfica. O escritor italiano Franco La Cecla escreveu um livro, que foi traduzido para o francês com o nome de Contre L’Architecture. Aqui foi publicado pela editora Arléa (www.arlea.fr) e que é uma crítica bem sensível, do ponto de vista literário, à arquitetura comercial, à arquitetura neoliberal e à arquitetura pós-moderna, dos escritórios renomados mundialmente, como os de Renzo Piano, Frank Gehry, Rem Koolhaas e o escritório japonês de arquitetos Sanaa. Uma delícia de texto. É menos consistente do que o de Jane Jacobs (Morte e vida de grandes cidades), mas tem a mesma aura. Estou levando um de presente para Soraya, que vai começar a dar aulas no Ippur/UFRJ.

La Cecla, por sua vez, recomenda uma americana, uma menina ex-punk, chamada Rebecca Solnit, que escreveu sobre como se perder na cidade (ele cita dois livros dela: um que se tornou indispensável, segundo La Cecla, chamado Wanderlust, e o mais recente, A Field Guide Getting Lost), uma idéia que caminha pela via contrária dos guias tradicionais, sugerindo o descondicionamento do olhar do flâneur. Trata-se da experiência que a autora aprendeu quando era punk e vagava com seu grupo em busca de espaços da cidade normalmente negligenciados, mas que são potencialmente interessantes. Isso despertou sua atenção para vitalidade da cidade, independentemente dos planejadores urbanos.

Os parisiense aproveitam qualquer solzinho para ir para os parques e jardins da cidade

Acho esse tipo de reflexão uma forma de pensar a cidade mais saudável e interessante do que a velha melancolia da perda do patrimônio simbólico e físico, dos bares que fecharam e coisas assim, e que normalmente está por trás das iniciativas de guias sentimentais e fetichistas, nos lançando para o passado não mais alcançável. A cidade é, sobretudo, hoje.

Ruben usa uma expressão bem sugestiva em espanhol para se referir a um tipo de flanagem por certas imediações e cercanias: “Vuelta de perro” (volta de cachorro, aquela em que se leva o animal para fazer suas necessidades fisiológicas). A metáfora é pertinente. Outro dia vi um olhar de súplica, quase canino, quando ele sugeriu à Marta: “una vuelta de perro?”, após um dia inteiro de trabalho encerrado num estúdio de televisão. Ao sair do apartamento, demonstrava a mesma alegria dos cachorros, que saem puxando os donos pela coleira. Para o flâneur é assim. Nem que seja uma volta no quarteirão, é preciso caminhar pela cidade, olhos e coração abertos.

Na sexta-feira passada, eu e ele fizemos isso. Demos uma longa vuelta de perro por vários cartiers de Paris. Jardins, galerias de arte, passagens, becos, cafés, sorveterias, livrarias, a Pont des Arts, com os cadeados no alambrado, uma espécie de simpatia que os casais adotam para garantir que seus romances não estejam fadados ao infortúnio. Foi um dia de sol e calor e nós suamos a camisa. No auge, uns 20 graus. Ótimo para caminhar e nossa vuelta de perro durou umas quatro horas e tantas. Caminhamos por metade de Paris. Lamentei profundamente não estar com a câmera fotográfica. Vi coisas que mereciam um registro (mas ontem voltei à Pont des Arts e fiz as fotos dos cadeados).

Uma banca de jornal na St-Michel, anunciando concerto de Joan Baez (em outra, era o Cat Stevens), estou me sentindo nos anos 60

À noite tomamos uma cerveja num café que até então só conhecia de ouvir falar: La folie em Tête, perto da Place d’Italie, na famosa rue de Buttes aux Cailles, que também dá nome a essa região bem legal. Uma espécie de reduto boêmio cheio de bistrots, brasseries e restaurantes. Há outros excelentes bistrots como, por exemplo, Merle Moqueur e o anarquista, Les Temps des Cerises. Todos sensacionais e do lado da minha nova moradia. Ai meu fígado! Depois, com Marta, fomos a um restaurante cantonês no bairro chinês, juste à côté.

No sábado, me encontrei com Agnès Deboulet, pesquisadora e arquiteta da École, e Maéva Boudoin, que seguiu no dia seguinte para o Brasil para uma temporada de pós, em que vai estudar a relação dos escritórios de arquitetura com as agências públicas na urbanização de favelas em meio ao processo de revitalização do Rio para as Olimpíadas e Copa do Mundo. Enfim, pano pra manga. Conversamos muito. Gosto de Agnès. Ela é muito antenada e incisiva em suas opiniões e possui um engajamento refinado em defesa da cidade. Vamos nos encontrar novamente amnhã, na École, para uma conversa mais tranqüila e para pegar algumas indicações bibliográficas para minha pesquisa. Quanto a Maéva, que me pareceu muito legal, indiquei logo que procure Soraya.

No domingo, passei a manhã e início da tarde fazendo trabalho de campo no Marché d’Aligre fazendo anotações de campo. Sentei-me numa boulangerie (Boulanger Confisseur) que, aos domingos, põe mesinhas na calçada, e observei o vaivém das pessoas, entre moradores tradicionais e bobôs. Estava ao lado do café Le Charolais, onde um grupo de senhores na faixa dos 60 e poucos, fumavam cigarrilhas e falavam o que me pareceu ser turco. Eles também bebiam algo transparente num copinho pequeno, como os que servimos cachaça. Todo hora se juntava ao grupo algum outro vizinho. Alguns tomavam chá de hortelã. Entre os “turcos” não havia mulher. Já a maioria dos bobôs, extremamente elegantes e sempre com forte presença feminina, bebia cerveja. Alguns, no Charolais, bebiam vinho branco, acompanhando as ostras frescas, que são uma das suas especialidades. Mas é o sol aparecer para o pessoal pedir cerveja nos bistrots.

Além dessa espécie de turco, também ouvi árabe, espanhol, inglês e chinês. E isso é uma das marcas, em minha opinião, do cosmopolitismo de uma cidade. Não estou falando do turista, mas sim do morador imigrante, já integrado, já francês no que se refere às formalidades cívicas, mas que, quando estão entre compatriotas ou querem falar algo mais íntimo ou relacionado às suas origens recorrem ao idioma original. Em Paris, esse fenômeno é constante. Outro dia, presenciei uma discussão entre o que me pareceu ser pai e filha. Chineses de origem han, falavam mandarim e o sujeito gritava e gesticulava, lembrando a coreografia dos filmes chineses. Gestos marciais para enfatizar a frase, já embutida de todas as ênfases.

Os cadeados no alambrado da Pont des Arts são uma simpatia para garantir o sucesso das relações amorosas. A moda. A prefeitura vinha à noite e tirava os cadeados, mas no dia seguinte havia mais. Eles acabaram deixando e virou um atrativo

À noite fui com Ruben e Marta ver Wast Land, o sensacional documentário da britânica Lucy Walker sobre o trabalho de Vik Muniz. Imperdível. É o tipo de documentário que começou com um projeto e a realidade acabou por modificar sua narrativa, dando muito mais emoção e improviso. A vida das pessoas no lixão de Gramacho e o processo de realização da obra de Vik e como isso, no fim, afeta a vida desses catadores de lixo é de fazer chorar copiosamente. Foi um ótimo fechamento para o domingo.

Ontem, fui à École obter os acessos às bibliotecas e, depois do curso na Alliance, caminhei pelo Jardin Luxembourg, desci o boulevard Saint-Michel e depois a orla do Sena. Voltei à Pont des Arts para fazer as fotos que ilustram este post e depois segui para casa de Marta, onde jantei. Hoje, faço esse relato, com a intenção de atualizar o diário de campo. É isso, a bientôt!

2 comentários:

  1. Querido Paulinho, adorei os presentes: o livro e esse passeio de cachorro pela pont des arts e pelo Le temps de cerises, onde eu ia com frequência, perto da piscina onde nadava e da fonte onde eu pegava água, na Butte aux Cailles. E agora tu taí, e eu aqui... lindo passeio ! AgnÈs vai vir para o seminário Jane Jacobs. Fiz o convite ontem. Ela vai te dizer. Meu amigo, escreva mais, estou contigo ! Beijos

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  2. Sô, vc faz uma falta incrível aqui. Precisamos dar una vuelta de perro juntos em Paris (ou Rio ou Niterói)... Que ótima notícia essa a da Agnès, até porque havia comentado com ela que estávamos planejando fazer o colóquio. O Pedro ainda não me repassou os contatos do Hannerz e Roselyne. Vou procurar pelas instituições. É isso. Depois vou te escrever um longo email. Beijos.

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