quinta-feira, 17 de março de 2011

O bar como espaço de socialização

Mais uma imagem do Café de l'Industrie, para variar

Paris, 17 março 2011. Os franceses têm uma palavra, bagout, para expressar um tipo especial de loquacidade. Não se trata apenas do dom da eloqüência, da variedade e riqueza vocabular. É algo que tem mais a ver com a formação mesmo literária da pessoa. Um tipo de formação cognitiva de quem foi criado entre livros, mergulhado em narrativas literárias, mais do que audiovisuais. A pessoa que tem o dom do bagout fala como se escrevesse, com todas as estratégias narrativas do texto. É a literatura falada. E, desse modo, uma narrativa banal, comentada quase que casualmente no supermercado ou no café, se torna um grande enredo. Um exemplo literário de bagout é o caboclo Riobaldo, no Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa. Aliás, ali se trata mesmo de um caso excepcional de narrador, mas justamente por isso dá para se ter a noção do sentido de bagout, que também é traduzido, aí com um tom negativo, como tagarelice.

Zinc é uma expressão que os franceses usam para se referir ao bar e à boemia: se refere ao material metálico que forma o balcão

A experiência de estar mergulhando em outra cultura e em outro idioma, por mais que o francês divida sua raiz com o português no latim, é uma experiência cognitiva riquíssima. A forma como as frases são construídas, certos vocabulários, expressões e formas de falar, tornam cada pessoa em bagouts potenciais para mim. É impossível não prestar atenção à forma como eles se expressam. Não apenas em termos de vocabulário, mas de gestualidade, muxoxos, caretas, sopros e assovios entre palavras. A sonoridade musical da língua. Depois, à medida que vamos aprendendo e mergulhando na sociedade, tudo se naturaliza, inclusive o idioma. Já nada nos chama a atenção.

Ainda estou nesse momento de estranhamento, da cultura e da língua. Portanto, tudo é bastante intenso. Uma operação simples como comprar creme de barbear na farmácia ou baguette na boulangerie se torna uma aventura e eu fico atento às expressões, como o bonjour ou bonsoir, que abre o diálogo dentro da etiqueta de convivência pública em Paris. Mas é a ida aos cafés que me dá esse prazer refinado de ouvir os diálogos adjacentes à minha mesa, enquanto leio um livro. Como no Rio, Paris tem uma parte importante de sua socialização no bar. Quer dizer, aqui é no café ou no bistrot, que são a mesma coisa, sendo que café se refere ao estabelecimento durante o dia e bistrot, à noite.

As meninas estão fumando fora do café, onde é proibido fumar por lei

Em Paris, tenho freqüentado vários cafés e bistrots, mas sobretudo o de l’Industrie. É lá que me sinto em casa. E já começo a conhecer e ser reconhecido. Tem outro café, esse mais popular, mais um pé-sujo, que fica em frente ao Marché d’Aligre e é freqüentado pelos moradores mais antigos do bairro. Também passo por lá sempre que posso. Ali é um bom lugar para ver a vizinhança e fazer anotações etnográficas sobre o bairro. Ontem, acabei comprando um livro ilustrado com muitas fotos chamado: Une vie de zinc: Le bar, ce lien social qui nous unit. Um estudo sobre a importância dos bares em Paris. Teria caído bem esse livro, quando fiz minha dissertação sobre botequins cariocas, exceto que ele foi escrito no ano passado, sete anos depois da minha defesa do mestrado.

4 comentários:

  1. o muxoxo é o patrimônio imaterial francês por excelência. no terreiro de nation, a gente sabe que o caboclo subiu quando o cavalo faz o seu muxoxo e encarna novamente o seu "francês d'origine" (controlé...)

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  2. Ótima imagem, Ips! É exatamente isso! Saudade sua! Forte saudade, sacumé?

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  3. Estou gostando das cronicas, saborosas.
    Bjs!

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