segunda-feira, 7 de março de 2011

O sortilégio do déplacement



Paris, 7 março 2011. Ontem à noite, conversando com um amigo antropólogo brasileiro, que está em missão de pesquisa numa vila de pescadores de Portugal e passou o fim de semana em Paris, ele me falava de um fenômeno emocional, que ele batizou de "déplacement", para designar um certo estado alfa, em que nossa sensibilidade fica à flor da pele pelo fato corriqueiro de estarmos no estrangeiro. Nosso olhar se agudiza com o estranhamento das coisas, do cotidiano, e tudo se torna insuportavelmente intenso. No bom e no mau sentidos. Um dos efeitos que percebi em mim mesmo, desde que cheguei à Paris, foi o de uma determinação para mudar pequenas coisas que sempre adiei, como emagrecer, por exemplo, ou ainda me concentrar mais nas coisas que são do meu interesse.



Apesar de toda a comilança que venho descrevendo por aqui, tenho perdido peso, pela qualidade da alimentação, das combinações, mas igualmente por uma redução mesmo da fome. Quer dizer, da fome compulsiva que sempre me atacou no Rio, sobretudo no Globo, onde a ida à cantina muitas vezes nada mais é do que uma válvula de escape ou meramente um descanso mental, entre uma tarefa e outra. Tudo bem que eu já havia começado esse movimento no Rio mesmo, mas, aqui, ele se acelerou profundamente. O tal "deslocamento" me ajudou nesse aspecto. É como se todas as regras sociais às quais estive submetido estivessem suspensas, sendo, aos poucos, substituídas por outras, que ainda estou aprendendo. E, assim, fico numa espécie de limbo cultural, sem ser “parisiense”, mas também já não sendo o mesmo “carioca” que era ao partir.



Qualquer pessoa que fez longas viagens ou morou fora sabe bem do que estou escrevendo. Em algum momento entramos no novo cotidiano e tudo se torna homogêneo e com uma expressividade comum, embora para sempre estrangeiros. Mas nesses momentos iniciais tudo chama a atenção. Vejo isso inclusive pelas fotos que tenho feito (é que no blog não tenho muito espaço para postá-las), pelas coisas que captam o meu olhar. Daqui a pouco, eu sei bem, deixarei de enxergar essas coisas e nada me parecerá estranho, por isso é bom registrar tudo.



Mas meu amigo falava de outra coisa ainda. Mais profunda no sentido psicológico e não apenas antropológico. É como se essa estranheza desatasse uma espécie de gestalt, et voilà: muda-se radicalmente. Sinto que é a isso que Soraya se referia quando me dava força para fazer essa viagem. Minha amiga profunda, ela intuiu as potencialidades de mudança que essa experiência me traria pessoalmente e estava, como sempre, certíssima. Mas acho que, para mim, a ficha só vai cair mesmo quando voltar e me inserir no velho cotidiano estando diferente. E uma das coisas que sinto que se desenha em mim é o reforço dos meus sentimentos amorosos por algumas pessoas, bem... uma muito em particular, mas isso é outro assunto, não é mesmo?



Bem, voltando à terra, hoje comecei meu curso na Alliance. Foi muito bom, mas me arrependi um pouco. É um curso bem caro e planejado para ser feito a, pelo menos, médio prazo, o que não se aplica muito no meu caso. Talvez tivesse gasto melhor a grana contratando um professor particular. Mas, já era. Estou lá numa turma de estrangeiros bem interessantes. Somos dois homens: eu e um tipo tcheco, que se chama Lubo. Aí tem uma freira, uma muçulmana da Tunísia, duas americanas, uma islandesa fotógrafa, uma espanhola chamada Carmen e por aí vai. Todas muito bonitas. E a professora é muito simpática e estimulante. Amanhã terei minha segunda aula.



Hoje fez novamente um dia lindo. Como sempre, depois da Alliance, dei uma caminhada pelo cartier. É pena que muitas lojas fechem às segundas, inclusive o Marché d’Aligre. Dá um ar meio de domingo. E o domingo, por sua vez, parece sábado. Todo mundo saindo, os bares lotados... Vi aqui perto uma rua que virou uma espécie de bobolândia, cheia de cafés chics, caves com degustação de aperitivos, restaurantes caros, butiques e lojas de móveis de designers. Uma espécie de Dias Ferreira num bairro que se bobotiza progressivamente.



Para terminar a narrativa do dia, hoje no metrô 4 (o mesmo onde entrou a menina deprimida com o cachorrinho) entrou um jovem imigrante do Leste da Europa ou Rússia e cantou no gogó aquelas canções tristes num idioma que me pareceu russo. O cara canta bem pra caramba. Mas, até por uma questão de coerência com a menina da vez anterior, continuei à la egyptienne. Mais tarde, caminhando na rua com Marta (fomos comprar uns vegetais para a sopa de logo mais), um cara maluco nos xingou com frases incoerentes. Me lembrei de Nova York. Coisas do mundo civilizado.

As fotos são um pouco das coisas visuais que andaram me chamando a atenção nas minhas caminhadas

3 comentários:

  1. Paulinho Thiago!
    Ótimo revê-lo, meu amigo, no terrain parisiense.
    Parabéns pelo texto e pela idéia do Blogg.
    Forte abraço.
    Zé Colaço

    ResponderExcluir
  2. Paulinho, vc pode fazer uma página no tumblr, se não for te ocupar muito tempo, é claro, e postar as outras fotos! Enquanto ainda não perde o olhar do estranhamento. :) os posts estão lindos.
    Giovanna

    ResponderExcluir
  3. Valeu Zé, pena que não pra gente conversar muito. Fiquei a fim de ir à Lisboa por uns quatro dias. Parece que tem mas tarifas muito baratas. Vamos ver. Se Capes depositar a grana...

    Gio, boa idéia! Eu tenho já uma página no Tumblr. Vou atualizar e pôr um link aqui para lá. Quando escrevo, imagino vc como um dos meus interlocutores, isso me ajuda a puxar pra cima no nível da narrativa... :-)

    ResponderExcluir